Uma das experiências mais observadas na carreira de um Executivo de Finanças é a sua passagem por instituições do mercado financeiro, como bancos de investimento, fundos de Private Equity ou de Venture Capital, banco múltiplos ou comerciais, boutiques de M&A, gestora de ativos, corretoras, seguradoras, entre outras. Tais instituições são grandes escolas para a formação profissional, especialmente no que tange ao desenvolvimento das capacidades técnicas financeiras. Além da parte técnica, a vivência no mercado financeiro também contribui para o aperfeiçoamento de algumas habilidades comportamentais específicas que são extremamente valorizadas no ambiente corporativo.
A atuação em instituições financeiras permite que o profissional se exponha constantemente ao mercado de capitais. Por conseguinte, algumas atividades que agregam muito conhecimento ao Executivo acabam sendo mais executadas nesse tipo de instituição, como, por exemplo: estruturação de operações de captação (debêntures, bonds e para capital de giro) e de financiamento; desenvolvimento de operações com instrumentos financeiros derivativos; análise e recomendação de melhores opções de investimentos e de alocação de recursos; coordenação de projetos de abertura de capital, de follow-on e de fusões e aquisições; quantificação de riscos; avaliação dos financials de empresas de diversos setores; e produção de modelos financeiros complexos. Ademais, a interação frequente com investidores, acionistas, vendedores e compradores estimula o aprimoramento de certas habilidades comportamentais fundamentais para o sucesso em um ambiente dinâmico e desafiador. Adaptabilidade a mudanças repentinas, raciocínio analítico, rápido aprendizado, resiliência, comunicação estruturada, senso de priorização e de urgência e, principalmente, capacidade de influência são alguns dos soft skills promovidos pela exposição contínua a um universo cuja pressão e o foco em resultado fazem parte do dia a dia.
Se, por um lado, trata-se de uma experiência muito rica para a trajetória do Executivo, por outro, a migração para companhias da economia real traz consigo uma série de oportunidades de amadurecimento profissional. Em termos técnicos, nesse tipo de empresa, a área de Finanças exerce um papel de suporte, assumindo uma responsabilidade mais voltada a assegurar tanto a credibilidade das suas Demonstrações Financeiras, quanto a manutenção das melhores práticas de governança, além de perseguir a maximização da rentabilidade do negócio através de iniciativas de incremento de receita e de redução de custos. Funções como a de “Planejamento Financeiro” – por meio do suporte às áreas de Vendas, Marketing e Operações no processo de tomada de decisão –e a de “Novos Negócios” ocupam uma posição de destaque na busca pelo retorno aos acionistas. Além disso, a atuação também envolve a manutenção de um fluxo de caixa sustentável e a execução de operações junto ao mercado de capitais quando necessário. No que tange às habilidades comportamentais, cabe ao Executivo gerenciar equipes multidisciplinares de forma eficaz e garantir o cumprimento, em conjunto com as diversas áreas internas, da estratégia definida e dos processos, controles, políticas e procedimentos pré-estabelecidos, mantendo, ao mesmo tempo, um alto nível de engajamento do grupo. Por sua vez, é preciso sustentar um discurso consistente e objetivo aos stakeholders externos e preservar o alinhamento de expectativas junto aos acionistas, investidores, analistas de mercado, bancos e governo. Com isso, características pessoais, como capacidade de influência e de criação de alianças, liderança, visão de negócio, compreensão holística, comunicação efetiva e senso de dono são amplamente desenvolvidas ao se atuar em companhias da economia real.
Considerando as particularidades observadas nos dois universos corporativos, a transição do mercado financeiro para a economia real pode ser muito desafiadora e precisa ser bem planejada para que se obtenha sucesso. Via de regra, dentro de uma empresa, existem algumas disciplinas de Finanças em que a mudança é mais comum, devido à similaridade das habilidades técnicas necessárias no desempenho da função. Áreas como Tesouraria Estratégica, Fusões e Aquisições, Planejamento Financeiro e Relações com Investidores são mais receptíveis a profissionais oriundos de instituições financeiras. A cultura corporativa e o modelo de remuneração também tendem a ser muito diferentes. Portanto, o profissional precisa ter ciência de que alguns valores enraizados em sua forma de agir e pensar precisarão ser descontruídos para que a adaptação seja mais fácil.
Com isso, a fim de entender esse tema em mais profundidade, convidamos três Executivos de Finanças que tiveram passagem por empresas do mercado financeiro para compartilharem suas visões e perspectivas.
Carlos Calheiros
CFO | Tegra Incorporadora
Fernanda Kanan
Diretora Financeira | Granol
Thaís Pinho
Diretora de FP&A e Controladoria | Grupo Boticário
Quais são as principais adaptações necessárias e os maiores desafios enfrentados durante a transição de carreira de uma instituição do mercado financeiro para uma empresa da economia real?
Carlos Calheiros: Creio que as principais adaptações necessárias são o foco na gestão das pessoas e uma visão geral dos processos que formam os resultados da empresa. Normalmente, profissionais do mercado financeiro são treinados e cobrados para o cumprimento de metas de curto/longo prazo e, não necessariamente, focam na gestão de times, na maioria das vezes menores, de alta performance e não multidisciplinares. Nesse sentido, o profissional que se vê na economia real tem que procurar entender melhor toda a gama de motivações de que dispõe para induzir um time, normalmente grande e multidisciplinar, ao sucesso. As ferramentas disponíveis para esse fim não são apenas salários e bonificações de curto/longo prazo: é preciso focar na construção de uma visão consensual do propósito, entendendo todos os anseios dos profissionais que vão além da questão pecuniária. Além disso, o profissional que se vê sentado na posição de Executivo precisa ter plena compreensão da empresa, desde a formação dos seus custos, da eficiência dos seus processos, do custo de seu capital, dos canais de distribuição/venda de seus produtos e, por fim, da geração de sua margem/do retorno sobre o capital. São temas razoavelmente óbvios, mas normalmente pouco explorados quando se está no mercado financeiro em que a visão é mais individualista e, quando muito, abrangendo a área de atuação do profissional.
Fernanda Kanan: A primeira adaptação é que, apesar da grande relevância da cadeira de Finanças nas corporações, em raras situações, o financeiro de empresa tem um papel de geração de receita. Estar inserido em uma área non-core da empresa demanda que o funcionário seja ainda mais proativo na busca por informações e conhecimento. Além disso, o profissional de uma instituição financeira tem mais facilidade de se movimentar entre outras áreas, porque, em geral, demandam a mesma base de formação. Em uma empresa da economia real, o profissional de Finanças precisa buscar complementos a sua formação para ter uma visão mais completa das outras áreas e agregar mais valor ao negócio.
Thaís Pinho: Existem vários desafios, como o próprio artigo elenca. Porém, há dois pontos que considero cruciais para o sucesso nessa transição: ter alta capacidade de imersão no negócio e compreender a fundo a cultura da empresa (e como se inserir nela).
Sobre o primeiro, é vital dedicar tempo e ter muito foco no entendimento da cadeia em que a empresa está inserida, suas particularidades, complexidades, assim como os stakeholders direta ou indiretamente envolvidos no ecossistema em que a companhia opera. Isso facilitará, inclusive, o desenvolvimento de uma relação de confiança/parceria com o negócio, de forma a inserir o profissional no processo de tomada de decisões altamente estratégicas. Um bom financeiro, seja qual for sua área de atuação na empresa, não deve ser “transacional” (o que só “cobra”), e sim “estratégico”: zelar pela rentabilidade e saudabilidade de longo prazo da empresa. Ele(a) deve ter grande foco em geração de valor, sendo capaz de propor caminhos assertivos, antecipar problemas e trazer soluções a questões em discussão por meio de dados e análises.
O segundo ponto é garantir que a cultura da empresa não seja subestimada. Isso é verdade para qualquer troca de emprego, claro, mas geralmente a transição do mercado financeiro para a economia real causa um “choque” maior. Isso passa por temas como a forma de realizar entregas, o nível/tipo de incertezas vividas, assim como o perfil diverso das pessoas envolvidas (já que uma única decisão pode envolver diversas áreas como Finanças, Marketing, Supply e Vendas, por exemplo). Uma dica: não tente fazer nada sozinho(a), como “herói de escrivaninha”. Há grandes chances de você falhar.
Como um profissional oriundo do mercado financeiro pode aportar mais valor a uma empresa da economia real sob o ponto de vista técnico? E quais conhecimentos técnicos ele mais desenvolve após a transição?
Carlos Calheiros: A reserva técnica de um profissional oriundo do mercado financeiro, normalmente, é diferenciada. São profissionais acostumados a performar sob enorme pressão e que tendem a gostar de aprender rapidamente novas habilidades que possam ajudar na busca de novos desafios. Sendo assim, o conhecimento técnico em Matemática Financeira, Economia, Direito, Contabilidade e, por vezes, até mesmo em Tributação, são ativos importantes que o profissional agrega à empresa da dita economia real.
Por outro lado, o conhecimento do negócio “stricto-sensu” da empresa é algo que merece investimento de tempo do Executivo. Por mais óbvio que possa parecer o negócio de uma empresa, em uma visão mais “generalista”, a persecução do objeto social é sempre mais complexa do que parece, e os perigos, como sempre, moram nos detalhes. Mais do que isso, é preciso também adquirir uma habilidade de liderança/protagonismo em assuntos diversos, por vezes distantes da zona de conforto do Executivo, para que se possa desempenhar plenamente o papel de líder da organização.
Por fim, a já mencionada construção de um time com visão única ou, pelo menos, consensual de propósito, bem como a garantia de um ambiente harmonioso de trabalho para todos, são outras habilidades esperadas de um Executivo e que, não necessariamente, são aprendidas em organizações do mercado financeiro.
Fernanda Kanan: Em geral, a formação do profissional em instituições financeiras é mais direcionada a desenvolver especialistas com habilidades técnicas mais sofisticadas, mas o seu conhecimento da economia real, normalmente, é mais generalista, assim como o entendimento sobre as outras áreas da empresa. Ao fazer essa transição, é essencial que o profissional estude o setor em que a empresa está inserida, conheça seus desafios e se aprofunde no papel que o financeiro tem no atingimento do plano estratégico. A experiência de cada profissional e a representatividade do financeiro na estratégia da empresa vai definir o valor dessa sinergia de conhecimentos, mas, em geral, identifico maiores ganhos nas áreas de Planejamento Financeiro e em mesas de operações de empresas mais demandantes de capital de terceiros, ou atuantes em derivativos.
Thaís Pinho: Geralmente, Executivos que fazem a transição tiveram muita exposição a diversos players de mercado em sua trajetória no mercado financeiro. Por esse motivo, geralmente carregam bagagem valiosa sobre inovação e melhores práticas financeiras, o que é um excelente ativo para a empresa que os recebe. Além disso, profissionais do mercado financeiro costumam ter uma visão estruturada sobre processos, algo que muitas companhias carecem no Brasil. Uma vez na empresa, o Executivo desenvolve muitos outros conhecimentos técnicos, seja via exposição a áreas antes não conhecidas, seja via particularidades daquele negócio em específico. Finanças é um mundo vasto, com diversas áreas de atuação, e, quanto mais esse Executivo girar nas funções, mais completo ele será e mais valor poderá agregar. Aliás, se o profissional conseguir ter, também, ao menos uma vivência em áreas fora de Finanças, poderá desenvolver skills valiosos para abrir seu campo de visão, inclusive sob a ótica financeira.
Existe alguma disciplina de Finanças, específica em empresas da economia real, na qual a adaptação de profissionais oriundos do mercado financeiro acaba se tornando mais fácil e mais natural?
Carlos Calheiros: Não creio que exista uma disciplina específica de Finanças que seja mais importante ao se fazer a transição para uma empresa da economia dita real. Provavelmente, dependerá muito da área de atuação do profissional em questão. Falando da minha experiência, procuro continuar evoluindo em conceitos contábeis que não são apenas necessários para o dia a dia da gestão, mas também na linguagem essencial a fim de me comunicar com acionistas/credores da companhia.
Fernanda Kanan: A minha transição de banco para empresa foi saindo de uma mesa de pricing de banco para uma mesa de operações de uma trading. Assim, praticamente mudei de lado da mesa sem muitas alterações de rotinas, o que tornou bem fácil a adaptação. Nessa área, muitos profissionais migram de banco para empresa com relativa facilidade. No entanto, para não ficar limitada à essa área e conseguir buscar posições mais estratégicas, senti a necessidade de complementar a minha formação com cursos e reforçar a interação com as áreas correlacionadas.
Thaís Pinho: Sim, diversas áreas. Entre elas, FP&A, Controladoria, Tesouraria, Crédito e Cobrança, Planejamento Estratégico e Relações com Investidores. A facilidade ou naturalidade da transição também acaba dependendo muito da área de atuação do profissional antes da migração (um profissional de Equity Research, por exemplo, tem uma transição mais natural para FP&A, Planejamento Estratégico e Relações com Investidores).
Quais são as habilidades comportamentais que um profissional de Finanças advindo de uma instituição financeira mais desenvolve ao atuar em uma companhia da economia real?
Carlos Calheiros: Sem dúvida a resiliência, paciência e cooperação são habilidades muito importantes quando se trabalha em uma empresa da economia dita real. Além disso, é preciso continuar sempre trabalhando para gerar mais integração entre as diferentes equipes, ser protagonista no que tange à construção de uma visão de propósito e à construção de um ambiente saudável e harmonioso para os times trabalharem com máxima eficiência.
Fernanda Kanan: Nas instituições financeiras, a capacidade de liderança, por vezes, pode ser secundária, porque a evolução profissional está mais atrelada ao atingimento do resultado, mas, na maior parte das empresas da economia real, essa habilidade é essencial para o profissional de Finanças, inclusive, porque a área financeira usualmente não tem o caráter de geração de receita. De forma mais ampla, acredito que o profissional de Finanças, para ser bem-sucedido na economia real, precisa conseguir transitar entre as áreas e entender o negócio da companhia para fazer as análises corretas, mensurar os riscos e direcionar as decisões adequadamente. Nesse sentido, a habilidade de comunicação e a visão estratégica também são habilidades-chave para a evolução.
Thaís Pinho: Com certeza, maior habilidade com pessoas e skills de liderança. Como mencionado acima, o Executivo se depara com diversas áreas que possuem escopos muito diferentes, incentivos diferentes e, muitas vezes, visões diferentes sobre o mesmo tema. O perfil dos colaboradores de uma empresa costuma ser mais diverso e pouquíssimas entregas são exclusivamente individuais, o que, inevitavelmente, cria uma oportunidade excelente de desenvolvimento para o Executivo.
Quando há interesse do Executivo em realizar essa transição, quais pontos ele deve levar em consideração na hora de se planejar para que a migração ocorra de forma bem-sucedida?
Carlos Calheiros: Entendo que a transição do mercado financeiro para a economia dita real é uma movimentação de carreira e, também, de vida. Deve-se levar em consideração o seu momento pessoal, seus objetivos de médio e longo prazo e o seu interesse pelo negócio da companhia para qual se pretende migrar. Em outras palavras, o mercado financeiro é bastante conhecido por remunerar muito bem os profissionais no curto prazo, ao passo que não é necessariamente um exemplo de carreiras longas e saudáveis. Quando se vai para a economia dita real, existe um alinhamento de longo prazo que tende a ser maior, com possibilidade de construção de uma carreira mais longa e diversificada. Mais do que isso, acredito que o próprio negócio da empresa deve gerar certa curiosidade/afinidade no profissional, algo que considero importante para que se tenha o prazer de trabalhar e continuar aprendendo.
Por fim, eu genuinamente acredito que a economia dita real apresente inúmeras oportunidades impactem real e profundamente a vida de outros profissionais. Falo aqui da possibilidade de ajudar a construir carreiras, preparar sucessores, ajudar a melhorar o corpo técnico da sua empresa e do seu setor de atuação, junto às amplas felicidades e realizações que um líder tem ao constatar seu protagonismo nessa evolução. Importante mencionar: a meritocracia da economia real existe e tem um ritmo diferente do mercado financeiro. Os prazeres que são experimentados como profissional e como pessoa, quando se consegue fazer um bom trabalho em uma empresa da economia dita real são, na minha experiência, incomparáveis.
Fernanda Kanan: Antes de qualquer transição de carreira, é essencial que o profissional faça uma autoanálise de como utilizar suas competências como alavancas para atingir seus objetivos, refletindo sobre quais gaps precisam ser preenchidos para que o Executivo, efetivamente, ocupe a posição pretendida. Quando essa transição envolve uma mudança de setor, a análise deve ser ainda mais cuidadosa, porque envolve mudanças em outros aspectos, tais como modelo de remuneração e evolução de carreira que podem ser bem diferentes na economia real.
Thaís Pinho: Nem sempre os Executivos têm tempo de fazer esse planejamento, já que, muitas vezes, são acessados pelas empresas para assumirem posições diversas na economia real, exatamente pela sua trajetória rica em conhecimento técnico, pensamento estruturado e visão estratégica. Mas, para aqueles que buscam a transição ativamente, é importante procurar entender mais sobre como as diversas áreas de uma empresa se conectam, a importância do alinhamento de Finanças com estratégia e, não menos importante, como os elementos da cultura organizacional podem ser capazes, ou não, de fazer com que a empresa prospere e gere valor no longo prazo.