Por Oscar Malvessi
Empresas estão deixando dinheiro na mesa: a forte dependência de financiamentos de curto prazo e a ilusão do EBITDA estão comprometendo os resultados e a criação de valor das empresas brasileiras
Nos últimos anos, o ambiente de negócios brasileiro tem sido marcado por juros elevados, instabilidade econômica e dificuldades de acesso a crédito. Esses fatores, somados a escolhas de gestão nem sempre assertivas, vêm pressionando o caixa das companhias e aumentando os casos de estresse financeiro. Não por acaso, cresce o número de empresas que recorrem à recuperação judicial como forma de ganhar fôlego, reestruturar dívidas e manter suas operações.
É nesse contexto que este estudo analisa a performance de 203 empresas do IGC da B3 entre 2020 e 2024, utilizando o Método VEC® de Criação de Valor. O objetivo é avaliar até que ponto o fluxo de caixa operacional tem sido suficiente para cobrir os financiamentos de curto prazo — e o que essa relação revela sobre a sustentabilidade financeira das companhias.
Os resultados acendem um alerta: 89 empresas, ou 43% da amostra, não geraram caixa suficiente para honrar seus compromissos de curto prazo, ficando com saldo negativo e necessidade de renegociação. O levantamento também mostra que o problema vem se agravando ao longo dos anos, evidenciando falhas de gestão financeira e a urgência de repensar estratégias de capital de giro.
Demonstra-se a seguir, os resultados do comportamento médio dessas 89 empresas no período de 2020 a 2024. Avaliaram-se as informações das Demonstrações Financeiras por meio de três indicadores do Método VEC® (Valor Econômico Criado), como:
- O Fluxo de Caixa Operacional (FCO);
- Financiamentos de Curto Prazo (FINCP): o valor contempla o principal dos financiamentos de curto prazo e as respectivas despesas financeiras de CP;
- Fluxo de Caixa após a dedução dos Financiamentos de CP (FCDFIN): cálculo do seu valor.
A quantificação e análise do comportamento dos KPIs indicados está demonstrada nas tabelas a seguir.
1. Fluxo de Caixa Operacional (FCO): O fluxo de caixa operacional (FCO) é o principal indicador de gestão financeira de curto prazo, pois demonstra a real saúde financeira da empresa. Ele representa o caixa gerado pelas atividades operacionais, deduzido da variação do capital de giro operacional líquido. Por representar a geração operacional, ele é apurado antes de considerar os aspectos financeiros, como os desembolsos financeiros das obrigações com financiamento de curto prazo.
Na tabela 1, nota-se que o comportamento médio do FCO mostra uma tendência de crescimento ao longo dos anos, mas com uma redução em 2024. No período, houve um crescimento médio de 39%, indicando uma evolução nos resultados operacionais.
Tabela 1 – Fluxo de Caixa Operacional (FCO) – Em R$ bilhões
Anos | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 |
1 – FCO | 697 | 882 | 1.035 | 1.064 | 965 |
Var (%) Média | 100% | 127% | 149% | 153% | 139% |
Já no gráfico 1.1, observa-se o comportamento histórico do EBITDA. Ao comparar seus valores com os FCO, constata-se que o uso do EBITDA na gestão financeira superestima a real geração de caixa da operação. Ou seja, na somatória dos cinco anos, o EBITDA em valor monetário foi 54% superior ao valor do FCO, transmitindo a impressão de uma situação financeira melhor do que a real.
Portanto, o EBITDA, por sua simplicidade e por desconsiderar fatores como capital de giro e impostos, não reflete a verdadeira geração de caixa da empresa. Usá-lo como principal métrica pode distorcer a avaliação da performance financeira e trazer riscos à gestão.
Gráfico 1.1 – FCO vs. EBITDA: Comportamento – em R$ bilhões
2. Valor dos Financiamentos de Curto Prazo (FINCP): Percebe-se, na Tabela 2, um aumento relevante nos Financiamentos de Curto Prazo (FINCP), que cresceram 77% no período. Como esse valor avançou mais do que proporcionalmente ao Fluxo de Caixa Operacional (FCO), evidencia-se uma necessidade crescente de recursos para manter a liquidez das empresas.
Tabela 2 – Financiamentos de Curto Prazo (FINCP) em R$ bilhões
Anos | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 |
2 – FINCP | -1.172 | -1.194 | -1.557 | -1.661 | -2.072 |
Var (%) Média | 100% | 102% | 133% | 142% | 177% |
3. Fluxo de Caixa após a dedução dos Financiamentos de Curto Prazo (FCDFIN): Obtém-se o cálculo deste indicador, deduzindo-se os Financiamentos de Curto Prazo (FINCP) do valor do Fluxo de Caixa Operacional (FCO). O objetivo desse KPI é demonstrar a capacidade financeira das empresas de honrar seus compromissos com as obrigações e os riscos de depender excessivamente de financiamentos de curto prazo.
Na Tabela 3, verifica-se que a evolução média do valor do FCDFIN não é positiva; ao contrário, apresenta resultado negativo e crescente ao longo dos anos, correspondendo a um aumento de 133% no período.
Tabela 3 – Fluxo de Caixa após a dedução dos Financiamentos – (FCDFIN) – em R$ bilhões
Anos | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 |
3 – FCDFIN | -476 | -312 | -522 | -597 | -1.107 |
Var (%) Média | 100% | 66% | 110% | 126% | 233% |
Essa tendência negativa confirma que, apesar do aumento no Fluxo de Caixa Operacional (FCO), houve um crescimento expressivo na dependência de Financiamentos de Curto Prazo (FINCP). Isso resultou em um aumento mais que proporcional do saldo negativo do Fluxo de Caixa após a dedução dos financiamentos de curto prazo (FCDFIN). Consequentemente, o crescimento do FINCP prejudica os resultados, eleva os riscos e aumenta as despesas financeiras das empresas. Vale destacar que o FCDFIN é um importante instrumento de análise gerencial, embora não seja comumente utilizado pelas instituições financeiras ao avaliar a concessão de empréstimos para capital de giro.
4. Dívida Líquida / EBITDA: Complementando essa análise, adiciona-se uma métrica comumente utilizada pelas instituições financeiras, com o objetivo de avaliar a relação do endividamento (covenants), e assim, permitir o financiamento das empresas pelos bancos.
Na Tabela 4, compara-se a evolução do comportamento médio desses indicadores e índice.
Tabela 4 – Dívida Líquida / EBITDA – Indicadores e Índice – em R$ bilhões
Anos | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 |
4 – EBITDA | 1.049 | 1.556 | 1.451 | 1.481 | 1.597 |
Var (%) Média | 100% | 148% | 138% | 141% | 152% |
4.1 – Dívida Líq. | 2.532 | 3.193 | 4.217 | 4.403 | 5.865 |
Var (%) Média | 100% | 126% | 167% | 174% | 232% |
4.2 – Dív. Líq / EBITDA | 2,4x | 2,1x | 2,9x | 3,0x | 3,7x |
Constata-se que o EBITDA cresceu 52% no período (vide Tabela 1.1), enquanto a dívida líquida aumentou 132% (item 4.1). Esse descompasso eleva gradativamente a relação Dívida Líquida / EBITDA, aumentando o risco das empresas. Como mostrado no item 4.2, essa elevação começa em 2022, atingindo 3,7x em 2024. Nesse ano, o indicador supera a faixa considerada aceitável pelo mercado, de 3,0x a 3,5x, que representa o limite superior dos covenants bancários.
Conclusão:
Os resultados desta análise reforçam que o crescimento sustentável das empresas depende, mais do que nunca, da capacidade de melhorar os resultados operacionais e gerar caixa de forma consistente. Observou-se que, embora tenha havido melhora na geração do FCO, o crescimento histórico do FINCP foi mais que proporcional, somado a perdas com aplicações financeiras, comprometendo a liquidez, os resultados e provocando destruição de valor.
Fica evidente que práticas tradicionais de análise, como o EBITDA, não devem ser utilizadas como indicador central de gestão financeira. Esse KPI se mostra inadequado, podendo mascarar a real situação da empresa e conduzir a decisões perigosas e desconectadas da realidade financeira. Recomenda-se priorizar o uso do Fluxo de Caixa Operacional, pois ele reflete a efetiva realidade financeira de curto prazo e fornece informações precisas e essenciais para a gestão.
A situação do FCDFIN negativo exige atenção redobrada da gestão para identificar os problemas operacionais que impedem a geração de caixa após a dedução dos financiamentos, sinalizando potenciais riscos financeiros. O descumprimento desses compromissos de curto prazo tem contribuído para o aumento de recuperações judiciais no Brasil.
Diante de um cenário econômico incerto e volátil, é essencial que as empresas revisem seus modelos de gestão financeira. Isso inclui priorizar indicadores e KPIs que reflitam a real capacidade de geração de caixa, fortalecer o planejamento financeiro como ferramenta diária de controle e decisão, e reavaliar o mercado, a margem de contribuição dos produtos e a estrutura fixa da empresa para corrigir distorções e melhorar resultados. O acompanhamento rigoroso do ciclo de caixa também pode reduzir significativamente a necessidade de capital de giro.
Integrar esses objetivos à operação, com governança e capacitação dos gestores, fortalece a sustentabilidade financeira e a criação de valor, preparando a empresa para enfrentar desafios e aumentar sua competitividade. Quando o objetivo é ampliar o valor de mercado, a criação de valor deixa de ser opcional e torna-se uma exigência, sustentada por uma gestão financeira estratégica, integrada e disciplinada. O tempo é escasso, e a atuação precisa ser imediata. A realidade aqui apresentada convida à reflexão e à ação prática: valor não se improvisa — constrói-se com gestão estratégica e disciplinada.
* Oscar Malvessi é consultor especializado em criação de valor, autor do livro “Como criar Valor na sua Empresa”, lançado recentemente. Publica artigos e livros sobre temas de Finanças Corporativas e Valuation. Atua também como Professor da FGV nos cursos executivos e professor de carreira na área financeira da EAESP FGV por mais de 30 anos.